sábado, 28 de novembro de 2009

Antes que anoiteça

"Por razões que não vêm ao caso, as últimas semanas, difíceis para mim, têm-me obrigado a pensar no passado e no presente e a esquecer o futuro. Sobretudo o passado: tornei a encontrar o cheiro e o eco dos hospitais, essa atmosfera de feltro branco, onde as enfermeiras deslizam como cisnes, que nos tempos de interno me exaltava, o silêncio de borracha, brilhos metálicos, pessoas que falam baixinho como nas igrejas, a solidadriedade na tristeza das salas de espera, corredores intermináveis, o ritual de solenidade apavorante a que assisto com um sorriso trémulo a servir de bengala, uma coragem postiça a mal esconder o medo. Sobretudo no passado porque o futuro se estreita, e digo sobretudo o passado visto que o presente se tornou passado também, recordações que julgava perdidas e regressam sem que se dê por isso, os domingos de feira em Nelas, os gritos dos leitões

(lembro-me tanto dos gritos dos leitões agora)

um anel com o emblema do Benfica que aos cinco anos eu achava lindo e os meus pais horrível, que aos cinquenta anos continuo a achar lindo apesar de achar horrível também, e julgo ser altura de começar a usá-lo uma vez que não me sobra assim tanto tempo para grandes prazeres. Quero o anel com o emblema do Benfica, quero minha avó viva, quero a casa da Beira, tudo aquilo que deixei fugir e me faz falta, quero a Gija a coçar-me as costas antes de me deitar, quero o pinhal do Zé Rebelo, quero jogar pingue-pongue com o meu irmão João, quero ler Júlio Verne, quero ir à Feira Popular andar no carrocel do oito, quero ver o Costa Pereira defender um penalti do Didi, quero trouxas de ovos, quero pastéis de bacalhau com arroz de tomate, quero ir para a biblioteca do liceu excitar-me às escondidas com a «Ruiva» de Fialho de Almeida, quero tornar a apaixonar-me pela mulher do faraó nos «Dez Mandamentos» que vi aos doze anos e a quem fui intransigentemente fiel um verão inteiro, quero a minha mãe, quero o meu irmão Pedro pequeno, quero ir comprar papel de trinta e cinco linhas à mercearia para escrever versos contadas pelos dedos, quero voltar a jogar hóquei em patins, quero ser o mais alto da turma, quero abafar berlindes

olho de boi, olho de vaca, contramundo e papa

quero o Frias a contar filmes na escola do senhor André, a falar do Rapaz, da Rapariga e do Amigo do Rapaz, filmes que nunca vi a não ser atrvés das descrições do Frias ( Manuel Maria Camarate Frias o que é feito de ti?)

e as descrições do Frias eram muito melhores do que os filmes, o Frias imitava a música de fundo, o barulho dos cavalos, os tiros, a pancadaria no «saloon», imitava de tal forma que a gente era com se estivesse a ver, o Frias, o Norberto Noroeste Cavaleiro, o homem que achou que eu lhe estava a mexer no automóvel e se desfez num berro

- Trata-me por senhor doutor meu camelo

a primeira vez que uma pessoa cerscida me chamou nomes e eu com vontade de responder que o meu também era doutor, que ao entrar no balneário do Futebol Benfica para me equipar o Ferro-o-Bico explicou aos outros

- o pai do ruço é doutor

e houve à minha roda uma nudez respeitosa, o pai do ruço é doutor, quero voltar a apanhar um táxi à porta de casa e o chofer perguntar:

- É aqui que mora um rapaz que joga hóquei chamado João?

e quero tornar a espantar-me por ele tratar assim o pai do ruço, quero partir um braço e ter gesso no braço ou, melhor ainda, uma perna para andar de canadianas e assombrar as meninas da minha idade, um miúdo de canadianas

achava eu, acho eu

não à rapariga que não deseje namorar com ele e além disso os carros param para a gente atravessar a rua, quero que o meu avô me desenhe um cavalo, eu monte no cavalo e me vá embora daqui, quero dar pulos na cama, quero comer percebes, quero fumar às escondidas, quero ler o «Mundo de Aventuras», quero ser Cisco Kid e Mozart ao mesmo tempo, quero gelados do Santini, quero uma lanterna de pilhas no Natal, quero guarda-chuvas de chocolate, quero que a minha tia Gogó me dê de almoçar

- Abre a boca Toino

quero um pratinho de tremoços, quero ser Sandokan Soberano da Malásia, quero usar calças compridas, quero descer dos eléctricos em andamento, quero ser revisor da Carris, quero tocar todas as cornetas de plástico do mundo, quero uma caixa de sapatos cheia de bichos de seda, quero o boneco da bola, quero que não haja hospitais, quero que não haja doentes, quero que não haja operações, quero ter tempo para ganhar coragem e dizer aos meus pais que gosto muito deles

( não sei se consigo)

dizer aos meus pais que gosto muito deles antes que anoiteça senhores, antes que anoiteça para sempre."

crónica de 15 de Dezembro de 1996, in Crónicas do Público (1996)

Antonio Lobo Antunes

quarta-feira, 11 de novembro de 2009

Em homenagem a José Carlos Ary dos Santos

Cavalo à solta

Minha laranja amarga e doce
meu poema
feito de gomos de saudade
minha pena
pesada e leve
secreta e pura
minha passagem para o breve, breve
instante da loucura

Minha ousadia
meu galope
minha rédea
meu potro doido
minha chama
minha réstia
de luz intensa
de voz aberta
minha denúncia do que pensa
do que sente a gente certa

Em ti respiro
em ti eu provo
por ti consigo
esta força que de novo
em ti persigo
em ti percorro
cavalo à solta
pela margem do teu corpo

Minha alegria
minha amargura
minha coragem de correr contra a ternura.

Por isso digo
canção castigo
amêndoa travo corpo alma amante amigo
por isso canto
por isso digo
alpendre casa cama arca do meu trigo

Meu desafio
minha aventura
minha coragem de correr contra a ternura

quarta-feira, 4 de novembro de 2009

VIP do mês- Herman José

Pois é; o nosso VIP deste mês, pode não ser agradável a alguns leitores que possam vir cá dar uma eventual espreitadela, pois o nosso VIP é suscitador tanto de amores como de ódios.
Pintar o cabelo de loiro, dizer palavrões e a sua recente mudança para o pior canal televisivo nacional (TVI) provocam em algumas pessoas um ódio tal ou uma desilusão total o que não é o que sinto de maneira alguma pois tenho o maior respeito pela figura de Herman como artista e inteligência que foi e que é.
O que é certo, é que este rapaz de 54 anos, que nasceu Herman José Von Krippahl em Lisboa, é o pai de toda esta nova geração de artistas cómicos que temos (Gato Fedorento, Os contemporâneos etc..).
Filho de um cinéfilo alemão, e uma mãe portuguesa, nascido lisboeta, no ano de 1954, no dia 19 de Março. Aos 4 anos Herman protagonizava os filmes amadores de seu pai, o que começou a cativá-lo para a representação. Estudou desde sempre no colégio alemão e aos 18 anos começaria a ter as primeiras aparições em televisão no programa "No tempo em que você nasceu". Com a democracia, Herman põe de parte a ideia de um curso superior em Munique.
Mais tarde, Herman começa em grande a sua carreira como "rei do humor contemporâneo português" com "Tal Canal" em que utiliza um género muito aproximado dos seus principais ídolos, Monty Python; um humor non-sense, corrosivo e inteligente. O "Tal Canal" acabou e não por vontade do próprio Herman, porém, "o verdadeiro artista" não se abateria e algum tempo depois lançou "Casino Royal", uma série passada em Lisboa na época da II Guerra Mundial, que para mim foi a melhor série deste.
Herman teve várias provas de um humor inteligente e de qualidade e isso é de louvar e de admirar para além disso, penso que Herman José criou toda uma geração de novos humoristas.
Herman José Von Kripphal está de parabéns pela marca que deixou no humor português!